A fábula do partido que criou a “Carteirinha Corrupção” num país chamado Banânia. Querem ler um texto estranho? Então lá vai!
Os
meus leitores sabem do apreço que tenho por Robert Musil e por “O Homem
Sem Qualidades”. Os eventos — ou não-eventos — que ele narra se passam
num país chamado Kakânia.
Kakânia é
um lugar imaginário, em que a corrupção, quando há, se dá na esfera das
vontades; as covardias, nunca grandes demais, se revelam na área do
intelecto; a decadência, inexorável, é a da inteligência. As
pusilanimidades são quase existenciais, traduzidas por suspiros, nunca
por estrondos (esse contraste já é um clichê, mas não resisti).
Falta a
Kakânia a exuberância tropical. Não socorrem aquele país os pistoleiros
do sangue quente que estão abaixo da linha do Equador, onde só há
perdão, nunca pecado. Kakânia não conhece as graças bonachonas e
incivilizadas do “homem cordial”. Kakânia não tem nem mesmo o hábito de
punir os santos, como se faz, dizem, em certo país ignoto, de que
falarei. E é punição preventiva, com características de chantagem e
tortura! Põe-se, por exemplo, a imagem do santinho de ponta-cabeça, às
vezes mergulhado num copo d’água. Se ele quiser sair daquela situação
difícil, que trate de realizar o desejo do esperançoso e doce
torturador. É a forma que a crença tomou, dizem, em tal terra estranha.
Chamemos
aquelas paragens exuberantes, em homenagem a Musil, de Banânia. Pronto!
Em Banânia, os amores e os ódios estão sempre à flor da pele. Banânia
não tem ascetas e monges para inspirar uma filosofia da contemplação e
da medida; para exaltar as ideias “magras e severas”. Em Banânia, os que
pensam a economia do espírito são os sátiros e os beberrões. O direito
do outro e o direito dos outros são vistos como censura à liberdade
individual e incapacidade para o gozo. Qualquer um, em Banânia, pode ser
ruim da cabeça; a única coisa indesculpável é ser doente do pé. Os
bananienses são, à sua maneira, fatalistas e acham que não há homem na
Terra que resista a certas paixões, como caipirinha (bebida local) e
bundalelê (bundalelê local).
A carteirinha
Este país singular, conta-me um nativo, deu à luz uma nova forma de gestão do Estado que é a “Carteirinha Corrupção”. É isto mesmo. Ela é fornecida por um partido político para evitar que os amorosos achacadores, olê, olê, olê, olá, exagerem na cobrança de propina. Eu explico.
Deu-se em
Banânia algo realmente notável. Empresas das mais diversas áreas,
prestadoras de serviço ou fornecedoras, têm duas tabelas: uma para seus
parceiros da própria iniciativa privada e outra para o governo. O Poder
Público, em Banânia, costuma contratar serviços por um preço que pode
corresponder a cinco vezes o valor de mercado. É que vai embutida, entre
outras delicadezas da civilização da cordialidade, a propina que tem de
ser paga ao partido (em Banânia, quem dá as cartas é o PTT), ao chefe
da área, ao chefão do chefão…
Conta-me
um nativo de Banânia que, num desses acertos de conta mensais, o
representante do “Sistema” afirmou que o valor que estava na maleta já
não era mais suficiente; doravante, teria de ser o dobro. O pagador se
espantou e resolveu subir a escala hierárquica para reclamar: “Como
pode? Assim o negócio fica inviável!”.
Recebeu,
então, uma “carteirinha” — a “Carteirinha Propina”. Foi informado de que
o documento o protegia de achacadores fora do controle, entenderam?
Aquele documento deixaria claro que ele já era um “colaborador” e que
nada de extra lhe poderia ser, então, exigido.
Banânia,
vejam vocês, é, então, este país encantador, notório por sua aversão à
institucionalização de procedimentos; conhecido por sua hostilidade a um
estado impessoal, que fosse gerido por um burocracia regular,
estatutária, avessa a arranjos e jeitinhos. Ao contrário: esse país
gosta da informalidade e considera que a rigidez legal é coisa de povos
tristes, que ainda não se deixaram amolecer pelos trópicos. E é
justamente essa Banânia a ter esses caprichos, não é?, que resultam na
formalização da corrupção e da propina. É, assim, como se fosse um
passe-livre fornecido por um comando militar em tempos de guerra, que dá
ao portador o direito de ir e vir sem ser importunado pela soldadesca
de mais baixa estirpe.
Isso
acontece em Banânia, conta-me o nativo da terra. Ele me disse que o tal
PTT sempre considerou que faltava à economia de mercado a devida
dimensão ética, que consiste, ele entende agora, não na criação de uma
ética do mercado, mas de um mercado da ética.
Eu fiquei
espantadíssimo com os sucessos de Banânia. E mais espantado fiquei
quando ele me contou que se descobriu que uma quadrilha operava no
coração do próprio governo. “Mas a imprensa no seu país, ao menos, é
livre, né?”, indaguei. Ele me disse que sim. “Que bom! Ao menos isso!”
Mas aí ele emendou: “É livre, sim! E boa parte dela está aplaudindo o
governo que nomeou a quadrilha por sua suposta coragem de demiti-la”.
Olhei com tristeza e até com compaixão meu amigo de Banânia!
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