Violência em São Paulo: as percepções e a realidade
A
VEJA desta semana traz uma reportagem de Laura Diniz e Otávio Cabral
sobre a violência em São Paulo. É sempre bom quando o jornalismo toma o
lugar da histeria. Leiam.
O
confronto entre o PCC e a polícia fez o número de mortes em São Paulo
subir nos últimos meses, só que nem tudo pode ser debitado na conta
desse embate. A população está assustada, mas a violência nem de longe
se compara à de uma década atrás.
Durante
todo o ano de 1999, um paulistano era assassinado a cada uma hora e
meia. Foi o auge da barbárie na cidade, mas a rotina das pessoas não se
alterava, os restaurantes e bares continuavam cheios, o assunto não
dominava as conversas – não se ouvia a palavra guerra. Depois de mais de
uma década de queda acentuada nas estatísticas de homicídios, São Paulo
terminou 2011 com uma morte violenta a cada oito horas e meia. Mas a
percepção dos cidadãos nem sempre acompanha a realidade. Escaldados pela
onda de atentados terroristas do Primeiro Comando da Capital (PCC) em
2006, quando a cidade ganhou ares de Ensaio sobre a Cegueira com
suas sempre movimentadas avenidas desertas em plena luz do dia, os 11
milhões de habitantes de São Paulo tornaram-se mais receosos. Agora,
estão mais uma vez com medo. Mas por quê?
A
criminalidade, de fato, aumentou muito nos últimos seis meses. Em
outubro, houve 149 assassinatos, quase o dobro dos 78 no mesmo período
de 2011. Ainda assim, isso significa uma morte a cada cinco horas – um
número muito mais baixo que o de dez anos atrás. O principal motivo
desse novo surto de violência em São Paulo é, sim, um confronto velado
entre policiais e criminosos do PCC. Mas, para entender o que se passa, é
preciso fugir do retrato alarmista e superficial e analisar friamente
os casos. A verdade é que nem todo policial assassinado foi vítima do
PCC, e nem todos os civis mortos foram alvo de vingança de policiais. Do
início do ano até quinta-feira, 92 PMs foram mortos no estado – vinte a
mais que a média dos últimos cinco anos. O patamar é inaceitável, mas
não se deve apenas a uma “matança” das forças de segurança.
Investigações policiais encontraram indícios de execução em 40% desses
casos – e nem todos estão ligados à facção criminosa. “Teve PM
assassinado porque assediou a mulher do traficante e PMs envolvidos com a
máfia dos caça-níqueis que foram mortos por seus companheiros de crime.
É preciso separar situações como essas dos ataques atribuídos ao PCC
para ter a real dimensão dos acontecimentos”, diz o coronel José
Vicente, ex-secretário nacional de Segurança Pública. Na segunda-feira,
dois policiais foram mortos no centro, a poucos metros do quartel da
Rota. Logo se pensou em um ataque do PCC. Mas eles estavam fazendo bico
como seguranças de um banco e morreram num assalto.
Do outro
lado, o número de assassinatos na capital sobe desde março, sem sinal de
recuo. Nos primeiros doze dias de novembro, houve 72 homicídios – em
2011, foram registrados 96 ao longo de todo o mês. Um levantamento do
Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa sobre os casos deste
ano ajuda a divisar melhor o que está acontecendo. Em cerca de trinta
dessas 72 mortes há sinais de crime encomendado: em grande parte,
pressupõe-se, eram maus policiais, fora de serviço, à caça de suspeitos
de participação em crimes contra as forças de segurança. No mais, são
crimes do cotidiano das grandes cidades, como o do filho que esfaqueou o
pai e a mãe, e tantas outras tristes histórias.
A
explicação serve para desmontar discursos políticos inconsequentes, mas
não para acalmar a população. Repórteres de VEJA percorreram nos últimos
dias os bairros mais afetados pela violência, em todas as regiões da
cidade, e conversaram com mais de uma centena de moradores. As ruas
estão mais vazias, e a maioria evita chegar tarde em casa. A avenida da
foto acima era movimentada à noite há alguns meses. Boatos de “toque de
recolher” determinado por criminosos se espalham, mas ninguém nunca vê
quem deu a ordem. São, no mais das vezes, apenas isso, boatos. O
sentimento difuso de medo não tomou conta de todos os bairros da cidade;
em alguns, a vida continua normal. Uma outra parte de São Paulo se
sente, no entanto, sitiada, assustada, não sem razão, com a alta nos
assassinatos. O que está por trás, então, da violência que alterou a
rotina de enormes bolsões da periferia?
Integrantes
da cúpula que elabora a política estadual de segurança afirmam que, no
início deste ano, o serviço de inteligência da polícia paulista detectou
que o PCC preparava uma nova geração de líderes, que, para se
legitimar, planejava grandes roubos e atentados. Por essa narrativa, a
ação da Rota – a tropa de elite da Polícia Militar – não foi uma
ofensiva aleatória, mas estratégica. “A Rota não dispersou forças, agiu
com inteligência em cima de pontos estratégicos do PCC”, afirma um dos
responsáveis. Em um aspecto, a avaliação do governo estadual coincide
com a de policiais que estão nas ruas na linha de frente de combate ao
crime e também dos bandidos: em determinado momento, a letalidade do
poder público aumentou. Em maio, a Rota matou seis integrantes do PCC na
Zona Leste. Em setembro, nove criminosos foram mortos enquanto
promoviam um julgamento em um sítio na Grande São Paulo. As apreensões
cresceram também. Em uma ação, a polícia conseguiu capturar uma
quantidade de drogas, armas, dinheiro e explosivos que equivale ao
faturamento de um ano de roubos do PCC. Os criminosos, seja pelo abalo
financeiro, seja pelo que perceberam como uma quebra das “regras do
jogo”, reagiram.
O
acirramento da violência e a sensação de insegurança passaram a
prejudicar os negócios da facção, principalmente o tráfico de drogas.
Desde o fim de setembro, gravações em poder da polícia mostram líderes
do PCC ordenando que cessem os ataques a policiais. Mas, por vários
motivos, a situação já havia saído de controle. Hoje, o PCC não é mais
tão bem organizado quanto era nas ações de 2006. Não há um comando
unificado. O mais famoso líder do grupo, Marco Willians Camacho, o
Marcola, está preso há seis anos e perdeu poder. “Hoje o Marcola é uma
espécie de rainha da Inglaterra do crime”, afirma um promotor que
investiga a facção. Dois bandidos brigam pela sua sucessão – Roberto
Soriano, o Beto Tiriça, e Abel Pacheco de Andrade, o Vida Loka -, o que
provoca uma divisão entre os membros da facção que estão na rua. Mais
violento e menos estrategista, Vida Loka defendeu a continuidade dos
ataques mesmo depois de a maior parte do bando ter recuado. Para piorar a
situação, bandidos comuns, sem ligação com a facção, aproveitaram a
onda de violência para eliminar desafetos e atribuir as mortes ao PCC. O
grupo criminoso é um inimigo real, e não um grupo em processo de
extinção, como alguns assessores do governador Geraldo Alckmin (PSDB)
insistem em dizer. Mas o poder da facção não chega perto do de grupos
criminosos do Rio de Janeiro, como o Comando Vermelho, o Terceiro
Comando e as milícias comandadas por ex-policiais.
Um dos
efeitos mais nefastos da percepção de que o crime pode confrontar o
poder público é o encorajamento dos bandidos. Um exemplo disso ocorreu
na semana passada em Santa Catarina. Descontentes com a linha-dura em
uma prisão de segurança máxima, criminosos lançaram uma ofensiva à la
PCC. Quase quarenta veículos, entre ônibus e carros, foram incendiados
no estado, onde bandidos chegaram a atirar contra postos da polícia –
três marginais acabaram mortos. Mais cedo ou mais tarde, vão perceber o
óbvio: é impossível para uma quadrilha, por mais organizada que seja,
derrotar a força do estado.
Por Reinaldo Azevedo
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